quinta-feira, 26 de abril de 2012



Décio Freitas

(Ele revirava o passado procurando soluções para o Brasil – Luis Augusto Fischer)



Gaúcho da cidade de Encantado nascido em 06 de setembro de 1922, Décio Bergamaschi Freitas se mudou para Porto Alegre para estudar no Colégio Rosário.

Formou-se em Direito pela Universidade do Rio Grande do Sul, onde iniciou intensa militância política no Partido Comunista Brasileiro e o trabalho na imprensa.

Décio é, sem dúvida nenhuma, o responsável por um organizado movimento negro no Brasil, e se hoje o tema do racismo é recorrente, boa parte do crédito pode ser dado ao historiador gaúcho.

Pesquisador da cultura negra, pioneiro na sistematização de Zumbi dos Palmares.
Seu livro de 1971, Palmares, a Guerrilha Negra, começou a ser escrito quando ele ainda cumpria exílio no Uruguai após o golpe militar, nele Décio recupera a luta contra a escravidão em Palmares é nele que apresenta dados e informações que mudaram a forma de encarar a resistência do Quilombo dos Palmares, como a maior insurreição escrava da América Latina, e onde o autor comprova a existência do herói Zumbi dos Palmares. Sua obra provocou transformações reais e não apenas intelectuais.

Em sua vida mesclou história e jornalismo em seu tipo de escrita.

O faro de jornalista ele adquiriu na década de 40, quando foi repórter do Correio do Povo e do Diário de Notícias - escreveu artigos também para a revista Continente de São Pedro. Com Dyonélio Machado, fundou a Tribuna Gaúcha, primeiro diário gaúcho de esquerda. Entrevistou figuras como Getúlio Vargas, Borges de Medeiros e Flores da Cunha. Com o primeiro, passou longos dias e noites conversando nas fazendas de Santos Reis e Itu, em 1946. A cada manhã, Décio transcrevia os diálogos para que o ex-presidente corrigisse eventuais equívocos com o próprio punho. Tinha planos de publicar um livro reunindo as entrevistas, com o título de Conversações com Getúlio Vargas, mas não teve tempo para isso. "Os intelectuais gaúchos não produzem reflexões sobre o Brasil. 0 sentimento separatista e o irredentismo agem no Rio Grande do Sul, inconscientemente e incontestadamente" DÉCIO FREITAS, NA APLAUSO 2 (1998) .

No tradicional almoço das quintas-feiras, no restaurante Copacabana, costumava deliciar os amigos com histórias que oscilavam entre o patético, o melodramático, o grotesco e o sublime. "A versão de uma história não era exatamente a mesma um ano mais tarde. A maior parte era proibida para menores", conta Gonzaga. Como a do homem com dois pênis, que Décio relatou, certa vez, ao cineasta Cacá Diegues, de quem foi consultor no filme Quilombo, em 1984.Exímio dançarino, gabava-se de ter aprendido tango com as amigas dos prostíbulos. "Décio dominava todas as manhas da sedução anteriores à revolução dos costumes dos anos 60. Ante a presença feminina, sua voz se adoçava e se alongava como um veludo. Neste ponto, era inexcedível", diz Gonzaga. (www.paginadogaucho.com.br).

Décio mantinha uma coluna no jornal Zero Hora, morreu no dia 09 de março de 2004 aos 81 anos de idade, deixando quatro artigos prontos, no dia 07, Zero Hora publicou “Esqueleto no Armário ? ” Reproduzido na integra abaixo, logo após segue a lista de seus livros publicados.



Esqueleto no Armário



Primeiro houve a morte de Juscelino Kubitscheck. Na tarde de 22 de agosto de 1976, o ex-presidente viaja de automóvel para o Rio. Na altura do km 143 da BR Rio/São Paulo, seu Opala se choca com uma carreta. O ex-presidente e seu motorista têm morte instantânea. Curioso: 15 dias antes, 7 de agosto, correra nos meios políticos e jornalísticos o boato de que Juscelino morrera em acidente de carro, em viagem de sua fazenda em Luizânia para Brasília. Ele planejara a viagem, mas desistira à última hora.

Quatro meses depois, a morte de João Goulart. Em 6 de dezembro o ex-presidente acha-se em sua estância de La Villa, em Mercedes, fronteira com o Brasil. A certa hora da noite vai dormir. Pelas três da madrugada, a esposa Maria Teresa ouve forte estertor do marido. Ele não responde e constata-se que está morto. Por enfarte, diz-se. O ex-presidente era de fato cardíaco, mas o problema achava-se sob controle. Pouco antes, viajara à França para exames e medicava-se regularmente. Causa-mortis:
enfermedad, reza vagamente o atestado de óbito. O governo militar argentino libera o corpo para ser enterrado no Brasil, dispensando a autópsia, obrigatória em tais circunstâncias.
Segue-se, finalmente, a morte do ex-governador do Rio de Janeiro Carlos Lacerda. Em 21 de maio de 1977, ele apresenta sintomas que parecem ser de forte gripe. Internado na Clínica São Vicente, morre inesperadamente durante a noite, sem um diagnóstico preciso. Surgirá depois uma suspeita de septicemia, cuja origem nunca se explicou.

As três mortes ocorrem num período de nove meses. Àquela altura, os três políticos eram inimigos jurados do regime militar. Quando governador do Rio, Lacerda fora o furioso mentor do golpe. Deflagrado este, Juscelino apressou-se a apoiá-lo. Logo ambos viram-se vítimas da política de Saturno: o regime cassou-lhes os direitos políticos. Então, em 1967, os três párias políticos resolveram unir-se contra o regime, formando a Frente Ampla. O encontro entre Jango e Lacerda, em Montevidéu, em setembro de 1967, tinhja tudo de inverossímil. Lacerda levara Getúlio ao suicídio e Jango ao exílio. Na nota expedida ao fim do encontro, justificaram a união pela "necessidade inadiável de promover o processo de redemocratização". Na nota, Jango reafirma o que sempre sustentara: "interesses dos trabalhadores", extinção das "instituições arcaicas", "nacionalismo econômico", "desenvolvimento com justiça social". Lacerda vazia radical
volte-face, subscrevendo tudo que sempre denunciara como subversivo. Na nota, Jango rompia politicamente com o cunhado Leonel Brizola, que preconizava a derrubada violenta do regime.

Suspeitou-se de imediato da causa da morte dos três líderes da Frente Ampla. Não teria sido acidental ou natural, mas frio assassinato a mando do regime. Redemocratizado o país, houve investigações por duas comissões da Câmara dos Deputados: uma sobre a morte de Juscelino, outra sobre a de Jango. Ambas inconclusivas: havia de fato "um somatório de dúvidas", mas só futuros "fatos novos" podiam esclarecer. Reforçando a teoria conspirativa, Miguel Arraes declarou em depoimento que Jango fora de fato "assassinado".

O recente livro O Beijo da Morte, de Carlos Heitor Cony e Anna Lee, é um thriller que mistura realidade e ficção, espicaçando velhas dúvidas sobre as mortes dos três políticos. Suscita a hipótese de assassinato pela Operação Condor, de existência tão falada e há pouco comprovada por documentos do governo americano. Os regimes militares davam sinais de esgotamento e os EUA já cogitavam de encerrá-los. O candidato democrata Jimmy Carter anunciava isso e depois o pôs em prática, quando presidente. Antecipando-se, as ditaduras da Argentina, do Brasil e do Uruguai visariam, pela Operação Condor, a eliminar as lideranças civis mais perigosas a transições sem riscos.

Admitem os autores não ter provas, apenas "indícios". E talvez a palavra final sobre o mistério das três mortes "nunca seja possível". O poder costuma trancar seus esqueletos em armários à prova de inquirições históricas.

Publicações:

  • Palmares - La Guerrilha Negra, Montevidéu, Nuestra América, 1971.
  • Palmares - A Guerra dos Escravos, Porto Alegre, Movimento, 1971.
  • Insurresições Escravas, Porto ALegre, Movimento, 1975.
  • Escravos e Senhores-de-Escravos, Porto Alegre, Escola Superior São Lourenço de Brindes/UCS, 1977.
  • Cabanos - Os Guerrilheiros do Imperador, Rio de Janeiro, Graal, 1978.
  • O Escravismo Brasileiro, Porto Alegre, Escola Superior São Lourenço de Brindes/Vozes, 1980.
  • O Capitalismo Pastoril, Porto Alegre, Escola Superior São Lourenço de Brindes, 1980.
  • Escravidão de Índios e Negros no Brasil, Porto Alegre, Escola Superior São Lourenço de Brindes/UCS, 1980.
  • O Socialismo Missioneiro, Porto Alegre, Movimento, 1982.
  • A Revolução dos Malês, Porto Alegre, Movimento, 1985.
  • Brasil Inconcluso, Porto Alegre, Escola Superior São Lourenço de Brindes, 1986.
  • A Comédia Brasileira, Porto Alegre, Sulina, 1994.
  • O Homem que Inventou a Ditadura no Brasil, Porto Alegre, Sulina, 1999.
  • O Maior Crime da Terra, Porto Alegre, Sulina, 1996.
  • República de Palmares: pesquisa e comentários em documentos históricos do século XVII, Edufal, 2004.
  • A Miserável Revolução das Classes Infames, Rio de Janeiro, Record, 2005.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Bar João


O epílogo do Bar do João

Embora fechado já há um bom tempo, o prédio que abrigou o lendário Bar do João, está chegando ao seu fim. Tradicional reduto da boemia de Porto Alegre, no local será construído um moderno centro comercial - com dezesseis andares - que ocupará toda a extensão do não menos lendário Cine Baltimore. Tanto o cinema quanto o bar representaram, por muito tempo, a cena cultural não somente do Bom Fim, mas de boa parte dos porto-alegrenses.

O fundador do Bar do João, João Brum, afirmou em entrevista ao Já Bom Fim, em julho de 2005, que ali passou os melhores momentos de sua vida. Também, na ocasião, revelou outras curiosidades.

João administrou seu bar por mais de quarenta anos. Porém, tudo começou no mais antigo e tradicional Bar do Serafim, conhecido como Bar do Fedor (que nunca fechava), e é merecedor de outra história. Ali João começou como garçom em 1937 e logo se tornou gerente.

Permaneceu na função por 11 anos. Após esse período, montou seu próprio negócio com um sócio - o Bar Imperial - para desgosto de Serafim. O Imperial durou quatro anos. Terminada a sociedade, finalmente montou seu próprio comércio, - o Bar Azul - na Osvaldo Aranha, 1008.

E foi nesse endereço, num amplo sobrado, que nasceu o famoso Bar do João. O comerciante colocou umas mesas de snooker nos fundos e foi morar no andar de cima. Por lá viveu por 27 anos. Na entrevista ao Já, João narra: “o salão do bar era muito familiar, com toalha e flores nas mesas. O movimento começava às 5h da madrugada: eram leiteiros, açougueiros, fiscais da saúde – gente que trabalhava cedo e que ia tomar café lá. Seguia aberto até a meia-noite ou até o último cliente. Tinha dias que ficava 24 horas sem fechar”.

O bar era frequentado pelos mais variados tipos – funcionários do HPS, professores, médicos, advogados, jornalistas, estudantes e também por uma clientela marginal, até mesmo por moradores de rua. Todos, de uma forma, se integravam ao espírito que marcou o Bar João, a universalidade cultural e a pluralidade social de seus frequentadores. “A freguesia era muito boa e o ambiente agradável”, resumiu João ao jornal em 2005. “Os velhos judeus ficavam horas lá, jogando pauzinho. Também se falava muito em futebol. O Carangache, um judeu “gremista doente”, era famoso também porque falava muito alto. A maioria no bar era gremista. Eu fui até sócio”.

E ao entardecer, esse público sofria uma transformação total. E do dia para a noite, com suas mesas de bilhar, atraia boêmios e toda a sorte de malandros, figuras que ficaram conhecidas pela caracterização do “magro do Bomfa”, criado e interpretado pelo humorista gaúcho André Damasceno – hoje conhecido pela imitação do ex-presidente Lula no programa global Zorra Total. Era a noite que o bar reunia uma frequência totalmente eclética, em que se misturavam, mais para a década de 80, jovens, marginais, militantes políticos, entre outros grupos. Passaram por ali e marcaram sua presença constante, políticos de todas as matizes, da esquerda a direita. Nomes como Isaac Ainhorn, que construiu sua história política como o vereador do Bom Fim, além de figuras como de vários prefeitos que comandaram nossa cidade, como Raul Pont, José Fogaça e o atual chefe do Executivo José Fortunati passaram pelas mesas do Bar João.

Também atores, músicos, aliás o Bar João foi cantado em verso e prosa em diversas composições, sendo a mais conhecida a dos irmãos Kleiton e Kledir eram freqüentemente vistos na noite do Bom Fim, exatamente no Bar João. De João Gilberto a Nei Lisboa, de Bebeto Alves aos Fagundes, não teve quem não passou pelo ambiente eclético do Bar João.

E assim, a noite caia e pela manhã o famoso café moído na hora, cujo cheiro ia até a calçada, atraia os velhos judeus aposentados e comerciantes, que para lá iam para tradicional jogo de “pauzinho” e suas intermináveis conversas. Como diziam alguns comerciantes, era a sala de reuniões, onde muitos negócios eram fechados.

João vendeu o Bar em 1979 para Júlio Leite, que ficou no velho sobrado até 1992, ano em que foi demolido para a construção de uma garagem. É nesse momento que o Bar do João vai para o imóvel localizado a poucos metros do antigo, na Osvaldo Aranha, 1026, seu último reduto e que agora dá seu suspiro final.

Nesse endereço a fama seguiu e se ampliou pela variedade de cachaças que ficavam a vista de todos, nas prateleiras atrás do longo balcão de atendimento, em grandes vidros transparentes. Tinha de tudo, misturas com ervas, chás, frutas das mais variadas. Em alguns vidros, para brincar com os clientes, cobras, aranhas e outros insetos peçonhentos – de plástico é claro – chamavam a atenção, para espanto dos menos desavisados.

Tudo ali, a disposição dos fregueses, e sempre sob olhares dos precursores da boemia e dos aposentados e comerciantes que continuaram a integração de culturas, do dia para a noite, jogando “pauzinho”, tomando café e assistindo a transformação do velho em um novo Bom Fim.

Ali também trabalharam algumas figuras que ficaram conhecidas de todos no bairro, como o Ilson, o Banana, o Índio, e por fim o Felipe, que esteve presente ao momento do fechamento do Bar. Todos, assim como o João e o Júlio deixaram a sua marca. Que fazem parte dessa história de forma incontestável.

Clientes como o Já Morreu, que agora é fiel freqüentador da Lancheria do Parque, o Paulinho Debatin, o Danilo e todo o pessoal do Bariri Futebol Clube que aos sábados joga pelada na cancha de areião na Redenção, todos, se somam a essa história. Do jogo de carteado, dos shows de rock – na era em que até um palco o bar teve - e que revelaram muitas bandas e músicos, dos churrascos cujos cheiros e fumaças se misturavam em uma área aberta localizada nos fundos do prédio...tudo, enfim é parte dessa rica história.

Em 2010, no período eleitoral, para a surpresa de muitos, o prédio do velho João foi temporariamente reaberto. Durante a reforma para que se tornasse um comitê político, muitos olhavam perplexos, alguns pediam para entrar, faziam excursões e indagavam se o bar reabriria. Foi um lampejo, um sonho, mas que não se realizaria. Vendido para uma incorporadora da construção civil, o seu fim era anunciado há muito tempo.

Agora, enfim, chegou o epílogo de uma era, de parte da história de pelo menos duas gerações que viveram intensamente o Bar João e as suas idiossincrasias. Ele, agora, deixa definitivamente o plano material para se perpetuar na imaginação e em registros como este, para que as novas gerações possam saber um pouco sobre um épico da universalidade. E com diria a canção...que saudades do Bar João...